Conversas sobre literatura, livros, escrever e ler

"Há semanas que, salvo duas breves interrupções, não pronuncio uma só palavra; a minha solidão fecha-se, enfim, e estou no meu trabalho como o caroço no fruto." René Maria Rilke

"A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever agora é o interminável, o incessante." Maurice Blanchot

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O Mario

Sempre emocionante quando fala de literatura. Sempre empolgante quando se refere ao potencial transformador da literatura. Sempre apaixonado por seu ofício, Mario Vargas Llosa e seus períodos imensos cheios de retornos abarrocados, além de ter sido um dos escritores mais lidos e relidos por mim, ainda é um dos intelectuais mais apaixonantes e polêmicos, sobretudo quando se repassa sua trajetória pessoal e política. Dele, li e reli Conversa na Catedral, meu preferido, livro de formação fundamental para que me apaixonasse definitivamente pela literatura como matéria de uso, de trabalho e de vida.

Do Mario destaco um trecho, retirado de artigo seu publicado na revista Piauí:

A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos.
A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte. Nós, leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstoi, nos sentimos membros da mesma espécie porque, nas obras que eles criaram, aprendemos aquilo que partilhamos como seres humanos, o que permanece em todos nós além do amplo leque de diferenças que nos separam.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Drops de invenção: os hiperbóreos

Aquele mendigo, queimando-se vivo, debatendo-se. Nunca nos esqueceremos da cena. Do cheiro. Me lembrou os fins de semana de clube, churrasco, todos nós ainda crianças, brincando na piscina dos pequenos, os pais entornando garrafas de cerveja, comentando jogos e simulando não-olhares para pernas bem torneadas, certamente não pertencentes às respectivas esposas. As mães de olhos colados em nossos corpos pequenos.

O álcool, quando começa a pegar fogo, parece invisível, fogo que só queima, sem se ver. Foi assim com o mendigo: Chico despejou a garrafa de álcool no preto e eu fui logo atrás, riscando fósforos de uma marca vagabunda. Tão vagabunda que tive que riscar oito palitos até que conseguisse acender o fogo.

Nós somos o máximo.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Alvíssaras! O rei está vivo!

A edição é impecável - da CosacNaify.

O escritor é argentino. Altamente recomendado por um sujeito da estatura do Roberto Bolaño. Os três capítulos iniciais são de tirar o fôlego - bem escritos, um texto direto, ágil, sem papas, frescura zero, imagens a mil. Enfim: um prazer, como sempre é prazer quando sou apresentado a escritor que desconheço.

Quando terminar a leitura, falo sobre o livro. Mas calma: o tijolão tem 488 páginas e eu tenho uma dissertação para terminar e alguns frilas por aí para concluir e entregar. Além do meu trabalho regular, de oito horas. "Quem mandou estudar", perguntaria, Julio, amigo de humor inteligentíssimo.

Resumo do post: estou feito pinto no lixo, feliz por ter encontrado escritor a) bom e b) até hoje desconhecido para mim.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Manual da paixão solitária (Parte II - Final)

Em seu “Manual da paixão solitária” Scliar consegue unir o que à primeira vista parece impossível: história, mitologia judaico-cristã (juro que acessei o Houaiss para ver se o hífen tinha sido mantido), um amor, não, dois amores, obrigações oriundas do costume etc.

A trama. O assunto escolhido para debates de um congresso mundial de assuntos bíblicos foi um trecho do Antigo Testamento que trata do clã de Judá, irmão de José (que acabou virando o tal poderoso José do Egito). Dois especialistas famosíssimos e arqui-inimigos, um famoso professor e uma sua ex-aluna, vão proferir suas palestras, esperadíssimas. Cada um resolve ousar e, em vez de apresentar um texto nos moldes acadêmicos, escrevem como se narrassem em primeira pessoa. O professor narra na voz de Shelá. A ex-aluna, na de Tamar.

A história segue. Judá tem três filhos: Er, Onan e Shelá. Da esquerda para a direita: o primogênito, o do meio e o caçula. O mais velho, moço sensível e de parco penhor masculino, está em idade para casar. Dois clãs decidem o casamento. Até aí, novela das seis faz igual, certo? Só que Er... bem, embora Tamar, a noiva escolhida, fosse uma mulher belíssima, Er era moço delicado que não gostava muito da fruta. Os irmãos tacitamente compreendiam, mas um homem que não gostasse de mulheres naquela época era tido como algo extremamente fora da ordem. Menos aceitável, por exemplo, que acreditar que um sujeito fosse capaz de abrir um mar em dois. Resultado: o casamento termina com Er se matando e Tamar sem ver a "cor da fruta".

Conforme rezavam os costumes, uma mulher que enviuvava devia ser desposada (assumida) pelo próximo irmão mais velho. A quem coube tão hercúlea tarefa? A Onan. Aquele mesmo, de cujo nome se originou “onanismo” (Onanismo, em português, é o “gozar fora”). Onan, culpando Tamar por ter feito seu irmão Er sofrer, casa-se com a moça, mas perpetra uma vingança impensada para a época: faz sexo com ela, jogando em seguida seu sêmen na terra, impedindo-a de ter filhos. Tamar, angustiada por um primeiro marido que não fazia sexo com ela, seguido por outro, que a impedia de ser mãe, desespera-se, impotente.

Confidente escolhido pela moça, o apaixonado caçula Shelá, assumindo a narrativa na primeira parte do livro, conta sua história, seguida, na segunda parte dois, pela narração de Tamar, feita pela ex-aluna daquele professor.

Meu deuzinho – o leitor pensará – por que esse sujeito escreveu toda aquela história do Marlon Brando, da luva e tal? Pois bem, aqui estamos tratando de um tipo de literatura que me apetece. Como você pode perceber, a trama do livro é gostosa, “pega” o leitor. Particularmente, li o livro inteiro em três dias, coisa impensável nesse meus dias apressados de fim de mestrado, com tempo mínimo disponível para leituras que não tenham a ver com a dissertação. E aqui entra um conceito bacana: o da boa literatura, que se identifica com aqueles livros que permitem várias leituras.

Esse livro do Scliar pode ser lido apenas como uma história de amor e encantamento de Shelá por Tamar, de vingança de Onan; igualmente pode ser ida com outros olhos.

Por exemplo, Shelá, o narrador da primeira parte do livro, tem uma caverna secreta, onde passa algumas tardes a moldar bonecos de barro. Só aqui vemos dois símbolos fortes para nós do Ocidente: a caverna e o barro.

A caverna remonta o mito da caverna platônico: um povo que vivia dentro de uma caverna e que só conhecia o mundo pelas sombras projetadas no fundo da caverna. O mundo real, para eles, portanto, resumia-se a sombras, a cópias daquilo que se entende por real. Faziam ficção com a vida, aqueles “cavernantes” do mito platônico.

O barro, por sua vez, foi a matéria-prima usada pelo deus cristão para modelar o homem.

Shelá faz diversas pequenas criaturas de barro e as esconde numa caverna. Imagem interessante, não? Mais tarde, o mesmo Shelá aprende a escrever. A escrita, naquela época, era atividade necessariamente voltada para os registros históricos, já que o era feita sobre material extremamente caro e de difícil grafia. Shelá transgride, não sem culpa, essa limitação da escrita. Ao romper o preceito, faz ficção, pois o que escreve sai, como diz, de dentro da alma: Shelá se constrói como narrador para nós, leitores. Para esconder seu pecado, de perpetrar uma escrita egoísta e pessoal, Shelá esconde seus escritos numa ânfora de barro. Novamente o barro, o símbolo.

Além: no foco narrativo do romance, Moacyr Scliar dá outro banho. Eu disse que o livro é dividido em duas partes, cada uma narrada por um professor, certo? E dentro de cada narrativa temos um narrador (Shelá e Tamar) capitaneando a escrita. Só que o professor e Shelá apresentam semelhanças - ambos aceitam ser limitados por costumes. Igualmente Tamar e a ex-aluna se assemelham na recusa em aceitar regras rígidas. Não poucas vezes, ao longo do livro, o leitor se indaga quem está de fato narrando, e quem está de fato sendo o leitor. Pois às vezes o professor, ao narrar as aventuras de Shelá, espelhadas em sua própria vida, torna-se leitor de si mesmo. Por aí vai: esse romance do Scliar merece muito mais do que essa meia dúzia de parágrafos num blog recém-criado por um sujeito desconhecido.

De minha parte, Moacyr Scliar está de parabéns, e mereceu, sim, o Jabuti. Belo livro, história cativante, boa literatura. Literatura tanto para quem vê um homem gentil flertando inocentemente uma moça, quanto para quem o vê fornicando com ela em praça (e tela) pública.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Manual da paixão solitária – Moacyr Scliar (Parte I)

Antes de falar propriamente do livro, conto um causo.

Mais ou menos três anos atrás estávamos, eu e um diretor amigo, conversando a respeito do que se considera “boa arte”: boa literatura, bom cinema, bom teatro. Além do que seria uma discussão até moral, que estava ameaçando desembocar num debate chatísimo e careta que acabaria não levando a nada terminou, graças a meu amigo, numa quase epifania a dois. Conto nos próximos parágrafos.

Lá pelos idos da década de 1950, Marlon Brando, então galã no auge, participava de um filme. Uma cena estava sendo feita: a mocinha descia do trem e era recebida por ele, o mocinho, que galantemente a ajudava a carregar a bagagem. Atravessavam uma praça, a mocinha despedia-se do mocinho e entrava numa casa. A cena fora ensaiada exaustivamente até a perfeição.

Dada a ordem luzes-câmara-ação, Brando pede encarecidamente ao diretor cinco minutos de pausa, aceitos. Tranca-se em seu trailer e sai de lá cinco minutos depois portando um sorriso enigmático. Sugere ao diretor uma pequena mudança na cena: que, na hora em que pega a mala da mocinha, igualmente leve suas luvas. O diretor, sem entender as razões do astro mas também incapaz de ver algo que prejudique a cena, autoriza a mudança. Assim fazem.

A mocinha desce do trem. O mocinho cavalheirescamente pega sua bagagem. Sua luva. Atravessam a praça conversando, enquanto o mocinho brinca com uma das luvas dela, chegando inclusive uma vez a vesti-la na própria mão e despi-la em seguida. Chegando à casa, despedem-se e a cena termina. Fade out.

O grande cinema, assim como a grande literatura, permite diversas leituras.

Um espectador mais ingênuo veria exatamente o que aqui descrevi: um cavalheiro brincalhão com luvas. No entanto, um espectador mais, digamos, preparado – que soubesse que simbolicamente vestir e despir uma luva é ato análogo ao sexual – sacaria que Brando trepou com a moça no primeiro encontro. E na frente de milhares de espectadores.

Grande arte, várias leituras. O que uma vírgula separa nunca esteve separado por quem tem talento para a coisa.

(continua)

Outro dele

Corpos em chamas se atiram na lama
mulheres e crianças primeiro
caranguejos aplaudem Nagasaki
bebê de oito meses é defumado
enquanto Beatriz
agora entende o poema derradeiro

Beatriz mãe solteira antes de morrer
deu um inútil pontapé na porta

(Trecho de "Caranguejos aplaudem Nagasaki", de Marcelo Ariel)

Obs.: Amanhã sai a primeira parte da resenha do Scliar.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Dois na cabeceira


Confesso que a escolha foi baseada no resultado do Prêmio Jabuti. Mas isso sempre acontece com loucos que, ao mergulharem num mestrado, perdem todos os lançamentos dos últimos meses. Aí, prêmios como o Jabuti tornam-se paradigmas legais.

Mestrado. Um dia acaba.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Tolos Nobéis

"Pela primeira vez tragava com seus olhos escancarados o abismo abaixo de si."
(O túnel - Friedrich Dürrenmatt)


Em dias de divulgação esfuziante do Nobel da Paz para um presidente norte-americano, pretendo me afastar o mais possível do efêmero. Prefiro pensar em coisas que apresentem uma mínima possibilidade de tocarem o eterno: um bom romance, que sempre será relido, mesmo daqui a vinte, quarenta anos; uma música que nos tira os pés do chão e nos lembra de que o mundo não está tão à beira do abismo quanto proclamam os telejornais; um poema que nos faz sentir banhados pelo sagrado, seja lá o que isso for. Prefiro pensar no que vale a pena.

E vale a pena falar de um escritor pouco conhecido pelos ares de cá. Atende pelo nome de Friedrich Dürrenmatt, um dramaturgo e contista que nasceu em 1921 na Suíça e já foi pro andar de cima (ok: "para um outro andar") desde 1990.

Se não fosse pelo cuidado e pelo carinho de minha amiga Angela Duarte, a preciosidade jamais me chegaria às mãos, como presente de aniversário, cinco anos atrás. O livro de Dürrenmatt traz apenas três narrativas curtas (A pane, O túnel e O cão), mas eu pretendo aqui tratar apenas daquela que me pareceu mais surpreendente: "O túnel", conto de 1952 reescrito pelo autor em 1978.

São quinze páginas de narrativa com aceleração constante, até o ponto em que, de tão veloz, nada da paisagem se pode vislumbrar. Uma bela alegoria para o século XX ou uma profecia para este nosso terceiro milênio de muros derrubados e ideologias fraturadas?

A história: um homem de vinte e quatro anos todos os domingos pega um trem. A viagem dura quase duas horas e o comboio passa por diversos túneis. A Suíça, aprende-se no conto, é o país com maior quantidade de túneis no mundo. Pois bem, o nosso protagonista, que começa e termina o conto sendo apenas designado como "homem de vinte e quatro anos", e que portanto é mais um rosto na mistura de rostos, naquele domingo à tardinha entra no trem lotado e consegue por milagre um lugar para se sentar. Acende seu cigarro e, alguns minutos de trem em movimento depois, percebe que o comboio entrara num túnel. Nada mais normal, aquela viagem era coalhada de pequenos túneis. Só que lhe pareceu que aquele túnel estava demorando mais do que o normal. Seria falta de atenção sua nas demais viagens, ou algo de fato tremendamente estranho estava ocorrendo ali?

A angústia do homem de vinte e quatro anos vai aumentando, potencializada pelos outros passageiros, que não se apercebem do fenômeno estranho. A narrativa avança como um duplo do comboio em sua viagem zunente túnel adentro. O túnel então passa a descer e o desespero do personagem exponencia-se. O que era antes uma viagem túnel adentro, passava a ser uma queda em direção às entranhas da Terra, o trem entra veloz num mundo de pedra que ninguém sabe onde, e se um dia, vai acabar.

Num ponto da narrativa, o protagonista pensa com seus botões: "Aparentemente nada havia se alterado, mas na verdade o poço já nos havia engolido para suas profundezas". E a chave do conto se descortina, com todas as suas possibilidades de interseções filosóficas, denunciando uma humanidade perdida, sem percepção do rumo que está dando a si e a seu planeta.

Poderia parar por aqui, por crer que você, leitor, possui atributos o bastante para estabelecer possibilidades de interpretação com muito mais competência que eu, mas não resisto à tentação de pincelar algumas possibilidades de boas conversas de botequim que poderão ser cometidas por conta da leitura desse conto: o mundo veloz atordoando-nos e impedindo-nos de perceber detalhes do caminho que percorremos; nossa incapacidade de assumir os riscos de nossas escolhas; a impossibilidade de um mundo que já há muito foi violentado o bastante por uma humanidade que não se percebe como sua principal predadora, mundo que, sem possibilidade de reestabelecimento de seu equilíbrio, termina por ludibriar a todos com uma ilusão-Matrix de que ainda há salvação; nossa absoluta incapacidade de perceber nosso lugar no mundo; igualmente nossa incompetência em transformar o que está à nossa volta, mesmo diante da certeza de que, essa não-transformação certamente redundará em nosso fim.

As possibilidades interpretativas do conto que levantei parecem todas taciturnas, concordo. Talvez eu esteja numa tarde particularmente lúgubre, sabe-se lá. No entanto, uma obra literária, quando bem tecida, como esse conto, sempre me faz acreditar. Não acreditar em prêmios Nobel da Paz, sorteados politicamente, ou na salvação redentora da raça humana, que é querer demais, mas no quê de sagrado que há em toda escritura - e aqui falo de escrituras laicas como esse conto. O que chamo de "sagrado" nada tem que ver com religiões ou deuses, mas num movimento de sublimação advindo da experiência da leitura de uma bela obra. Obra que sempre merecerá de mim grandes e efusivas saudações.

Ave, Dürrenmatt.
PS: Ah sim. E obrigado pelo presente, Angela.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Como era gostoso o meu francês

Para quem quer entender Blanchot, leia o capítulo sobre o canto das sereias.
Imperdível, esse francês... estou relendo devagar.

domingo, 20 de setembro de 2009

João e Maria

Conforme prometido, escrevo sobre Eles eram muitos cavalos, do escritor mineiro Luiz Rufato. O livro foi publicado originalmente em 2001 pela Boitempo Editorial - e esta foi a edição que me chegou às mãos.

O quartocapista, seja lá quem tenha sido, já inicia a primeira dúvida a respeito do livro quando o classifica como romance. Sabe-se que o autor ri-se do fato de ter ganhado prêmios com este livro. Não por ter ganhado, mas por ter ganhado na categoria "romance". Definitivamente não se trata de um romance. O que vemos neste livro é uma sequência de (boas, ótimas) narrativas curtas, ensaios de vidas, flashes de personagens, testes de narrativas - chame-se do que quiser - sem qualquer tipo de "pega" entre elas, a não ser o fato de que todas se passam num dia determinado (7 de maio de 2000) na cidade de São Paulo. Ou seja, fora aquele espaço e aquele tempo, aquelas narrativas não possuem qualquer tipo de semelhança, identidade. Minto: a escrita de Ruffato talvez seja o terceiro e último ponto de contato entre as 69 histórias curtas do livro.

Ok. Levanto ainda outra questão: um bom volume de contos, bem organizado e estruturado, não excepcionalmente apresenta essa mesma característica (de algo que propicie alguma "pega"entre os contos que o constituem). Assim, mesmo o fato daquelas narrativas ocorrerem no mesmo espaço e mesmo tempo não transforma o texto em romance. Mas esqueçamos do nome de Inês e vejamos como Inês de fato é.

Ora se utilizando de uma grande angular e focalizando o grande drama da cidade e de seus habitantes, ora se aproximando tanto do objeto a ponto de distorcer sua percepção, transformando-o em um Mr. Hide do Dr. Jeckyl original, o escritor de Cataguases mostra-se um habilíssimo manejador desse jogo de câmeras da ficção. Também os narradores propostos por Rufato excedem, mostrando-se criativos, como aquele que, como rato, conduz a narrativa, enquanto rói as carnes tenras de um bebê no chão de um barraco miserável qualquer.

Considera-se como uma das características do chamado narrador pós-moderno (tá bom, em outro post podemos discutir isso...) privilegiar o olhar, o ponto de vista, por conta da incapacidade da ficção suplantar o real - babilônico e bárbaro ao extremo. A barbárie da vida real não permitiria que a ficção se desenvolvesse, o que faria com que um tipo de narrativa que se aproxima muito do relato jornalístico preponderasse.

É o que Rufato faz: em muitas das narrativas de Eles eram muitos cavalos vemos um ficcionista que por vezes deixa-se resvalar pelo jornalista (o autor também é jornalista) na construção dos textos. Tanto é assim que há alguns (textos? segmentos? contos? chame-se do que quiser, vá lá:) segmentos que nada têm de história narrada. São, antes, cópias fiéis do mundo real, como no segmento 69, que é a transcrição de um cardápio de um restaurante supostamente chique. Ou no segmento 24, que é a lista de livros encontrados em alguma estante. Ou seja, são pedaços da vida real transformados em segmentos que, misturados aos segmentos de ficcões curtas produzidas para o livro, perfazem um mosaico que ilustra como que silhuetas, entrevisões de fantasmas que habitaram, naquele 7 de maio de 2000, uma São Paulo que a todo momento se mostra mais e mais babilônica e que foi captada pela lente do ficcionista.

Um bom livro de contos. Um belo exemplo de como a abordagem jornalística e a ficcional têm se aproximado e se confundido nessa quadra que alguns especialistas já apelidaram de pós-moderna. Mas ainda assim martela na cabeça as mesmas perguntas: o romance, hoje, ainda existe como gênero? Ou: o quão Frankestein será o romance nesta contemporaneidade desnorteadora? O quão o veremos desplugado e distante de sua imagem inaugural, moderna? Que questões o romance se prestará a responder? Ou apenas lhe restará aquela última pergunta, que sempre existiu em cada livro e que nunca foi competentemente respondida, mesmo por um Blanchot: "para onde vai a literatura"?

Enquanto não se conseguir responder adequadamente a essas questões, a procura não termina. Novos escritores sempre serão lançados. Igualmente novos livros. Em cada um deles, pode-se vislumbrar uma promessa. Em cada um, o João, não eu, mas aquele do conto infantil, esperará encontrar uma longa fileira de migalhas de pão. Talvez um dia se ache alguma resposta que não represente síntese alguma. No entanto, eu ficaria feliz se, ao menos quem procura, continuasse encontrando algum caminho para a literatura.

De tudo isso, fico feliz com essa apenas meia-verdade: o caminho vale muito mais do que a certeza de que ele leva a algum lugar.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Livro novo na cabeceira


Luiz Ruffato é um escritor de quem escuto falar bem, mas de quem nunca li nada.
Eles eram muitos cavalos é o primeiro romance do Luiz.
Em breve comento.

domingo, 13 de setembro de 2009

O meu poeta de cabeceira

O enigma

Será sempre
este esquecido alfabeto
cujas letras são nuvens,
tocando suavemente o nosso olhar
e os lagos?
O que diz a água
dentro dela antes de tocar a terra?
O que sussurra no ouvido da água o ar?
Como decifrar essa chuva imóvel para os mortos?
E essa outra chuva que escreve vida no ar?

(Marcelo Ariel)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Nem cruz, nem caldeirinha

O Zé Castello acaba de me deixar entre a cruz e a caldeirinha, tendendo mais para a última. No seu livro A literatura na poltrona, o crítico/jornalista é taxativo: “a partir da segunda metade do século XX, com a expansão da teoria literária, a literatura se converteu em um objeto de e para especialistas”.

De acordo com o Zé, a literatura se converteu numa coisa menor que sua crítica. Teríamos, por exemplo, mais gente que leu (ou disse que leu) O cão do sertão, livro do Luiz Roncari que fala da obra do Guimarães Rosa, do que leitores propriamente do Guimarães Rosa.

Se ninguém precisa conhecer a teoria do cinema para se emocionar com um bom filme, igualmente não seria necessário se entender de literatura para fruir um puta livro.

Por um lado, concordo, Zé. A literatura tem sido colocada num degrau bastante inferior que sua crítica e, certamente, que seus simulacros – best-sellers, livros de auto-ajuda etc.

Mas por outro lado, vejo com um pouco de susto um sistema literário ser deixado sem amparo crítico que reoriente as produções ficcionais e as proteja de um mercado que, cada vez mais, privilegia o reprodutível que vende, preterindo o surpreendente e avassalador, o novo que assusta, e encalha.

Vamos combinar? Nem a cruz nem a caldeirinha. Quero ler como sempre li: por prazer, amando e odiando, mudando de opinião a respeito de um mesmo livro, deixando de ler um escritor por suas posições políticas (sim, quero poder ser preconceituoso com quem leio!). Mas por outro lado quero entender mais um pouco de teoria literária, ler os “caras” que leram os “grandes caras”, concordar e discordar deles.

Literatura é um menáge que se faz entre quatro páginas. Se não gozar, não valeu.

domingo, 30 de agosto de 2009

Repensando Grande Sertão

Estive ultimamente com o Grande Sertão: veredas na cabeça. Como só o Italo Calvino poderia definir, essa obra do João Guimarães Rosa é um dos meus clássicos: aqueles livros para os quais sempre você retorna, seja para reler só um trecho, seja para abri-lo desde a primeira página e ler até o final, a fim de reviver a sensação da plena ignorância do que ainda terá pela frente. Há livros que lamento não poder ter novamente a sensação de lê-lo pela primeira vez. Assim, invejo quem ainda não leu, por exemplo, o Grande Sertão ou o Cem anos de solidão; Conversa na Catedral ou Angústia. Enfim, ainda me felicito por saber que ainda há milhares de grandes livros que ainda não li, o que significa que, mesmo que eu morra bem velhinho, nunca me sentirei sozinho, por mais amigos que já tenham morrido, poi terei livros à rodo para ler (além disso, pode ser que eu ainda tenha o auxílio luxuoso de um Alzheimer, que me tornará novamente ignorante de grande parte dos livros que já li).

Mas voltando ao Grande Sertão, percebi que este livro é inteiro construído sobre ambiguidades. Vamos ver?

Antes de tudo, lembremo-nos do nome do narrador da obra: Riobaldo. Baldado, me disse o Aurélio, significa frustrado, inconcluso. Riobaldo é um rio frustrado, que não dá em nada. Se pensarmos que os códigos do sertão afirmam que todo homem deve se perpetuar, um homem que se apaixona por outro (Reinaldo/Diadorim), e que, portanto, não fecundará filhos, é de fato um rio que desaguará num espaço infecundo e que necessariamente frustrará seu objetivo de criar nova vida. A primeira ambiguidade que se pode levantar, portanto, reside no fato de Riobaldo acreditar-se apaixonado por um homem ao longo de toda a obra. Apenas nas duas últimas páginas da obra nos é dado a conhecer o verdadeiro sexo de Reinaldo/Diadorim.

O objeto da paixão de Riobaldo igualmente constitui uma ambiguidade ambulante. Começa pela forma com que é nomeado: para a jagunçada, ele é Reinaldo. Só para Riobaldo ele é Diadorim, nome que tem um quase prefixo, "dia", que, como em "diálogo", pressupõe uma via de mão dupla para a sua consecução. Assim, Diadorim teria em seu nome sua persecução pelo duplo, pelo indefinível.

Outro marcador de ambiguidade na obra, e este se constitui no suporte de costura narrativa mais fundamental da obra, diz respeito à existência ou não do diabo e, portanto, na existência ou não do binômio "bem-mal". Se o diabo existe, a alma de Riobaldo já está encomendadíssima ao chifrudo. E, se o mal existe, igualmente existe o bem, e Riobaldo não se admite confortavelmente instalado no lado do bem, já que fez acordo com o chefe da gangue do mal. Mas se o diabo não existe, não há igualmente o bem ou o mal, e a alma de Riobaldo está livre. Ele termina a obra tentando se convencer de que o diabo não existe. Confortos. Mas termina o livro com "Travessias", uma marca de que a ambiguidade, seja qual for a verdade, se há ou não o diabo, ela persiste, assumindo-se assim elemento definidor e construtor da narrativa de Grande Sertão.