Conversas sobre literatura, livros, escrever e ler

"Há semanas que, salvo duas breves interrupções, não pronuncio uma só palavra; a minha solidão fecha-se, enfim, e estou no meu trabalho como o caroço no fruto." René Maria Rilke

"A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever agora é o interminável, o incessante." Maurice Blanchot

domingo, 30 de agosto de 2009

Repensando Grande Sertão

Estive ultimamente com o Grande Sertão: veredas na cabeça. Como só o Italo Calvino poderia definir, essa obra do João Guimarães Rosa é um dos meus clássicos: aqueles livros para os quais sempre você retorna, seja para reler só um trecho, seja para abri-lo desde a primeira página e ler até o final, a fim de reviver a sensação da plena ignorância do que ainda terá pela frente. Há livros que lamento não poder ter novamente a sensação de lê-lo pela primeira vez. Assim, invejo quem ainda não leu, por exemplo, o Grande Sertão ou o Cem anos de solidão; Conversa na Catedral ou Angústia. Enfim, ainda me felicito por saber que ainda há milhares de grandes livros que ainda não li, o que significa que, mesmo que eu morra bem velhinho, nunca me sentirei sozinho, por mais amigos que já tenham morrido, poi terei livros à rodo para ler (além disso, pode ser que eu ainda tenha o auxílio luxuoso de um Alzheimer, que me tornará novamente ignorante de grande parte dos livros que já li).

Mas voltando ao Grande Sertão, percebi que este livro é inteiro construído sobre ambiguidades. Vamos ver?

Antes de tudo, lembremo-nos do nome do narrador da obra: Riobaldo. Baldado, me disse o Aurélio, significa frustrado, inconcluso. Riobaldo é um rio frustrado, que não dá em nada. Se pensarmos que os códigos do sertão afirmam que todo homem deve se perpetuar, um homem que se apaixona por outro (Reinaldo/Diadorim), e que, portanto, não fecundará filhos, é de fato um rio que desaguará num espaço infecundo e que necessariamente frustrará seu objetivo de criar nova vida. A primeira ambiguidade que se pode levantar, portanto, reside no fato de Riobaldo acreditar-se apaixonado por um homem ao longo de toda a obra. Apenas nas duas últimas páginas da obra nos é dado a conhecer o verdadeiro sexo de Reinaldo/Diadorim.

O objeto da paixão de Riobaldo igualmente constitui uma ambiguidade ambulante. Começa pela forma com que é nomeado: para a jagunçada, ele é Reinaldo. Só para Riobaldo ele é Diadorim, nome que tem um quase prefixo, "dia", que, como em "diálogo", pressupõe uma via de mão dupla para a sua consecução. Assim, Diadorim teria em seu nome sua persecução pelo duplo, pelo indefinível.

Outro marcador de ambiguidade na obra, e este se constitui no suporte de costura narrativa mais fundamental da obra, diz respeito à existência ou não do diabo e, portanto, na existência ou não do binômio "bem-mal". Se o diabo existe, a alma de Riobaldo já está encomendadíssima ao chifrudo. E, se o mal existe, igualmente existe o bem, e Riobaldo não se admite confortavelmente instalado no lado do bem, já que fez acordo com o chefe da gangue do mal. Mas se o diabo não existe, não há igualmente o bem ou o mal, e a alma de Riobaldo está livre. Ele termina a obra tentando se convencer de que o diabo não existe. Confortos. Mas termina o livro com "Travessias", uma marca de que a ambiguidade, seja qual for a verdade, se há ou não o diabo, ela persiste, assumindo-se assim elemento definidor e construtor da narrativa de Grande Sertão.