Conversas sobre literatura, livros, escrever e ler

"Há semanas que, salvo duas breves interrupções, não pronuncio uma só palavra; a minha solidão fecha-se, enfim, e estou no meu trabalho como o caroço no fruto." René Maria Rilke

"A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever agora é o interminável, o incessante." Maurice Blanchot

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Boas surpresas

Já aconteceu várias vezes de você topar com um livro, namorá-lo, mas no final deixá-lo para uma outra oportunidade, às vezes tendo lido uma meia dúzia de páginas? Já aconteceu disso ocorrer várias vezes com o mesmo livro?

Minha experiência com "Coração da trevas", do Joseph Conrad, foi algo semelhante. O namoro, as tentativas, as abordagens... Deus do céu, acho que há mais de quinze anos flerto com esse livro, sempre agendando mentalmente que nas próximas férias, que no próximo fim de semana, que no próximo ano... E a leitura fica sempre pra depois.

Pois bem: passei o ano novo na região de São Sebastião (SP). Antes de fazer as malas, prometi não levar livro algum, pois iria relaxar, "des-pensar" o mestrado, coçar o oco do cérebro, sei lá, tomar chá de Hebe Camargo, zerar o QI... Só que não resisti. Eu e as livrarias temos um caso de amor patológico. Eu caí na asneira de passar na frente de uma. Não resisti e entrei. E logo na entrada... que livro me recepcionava? Aquele (esse) do Conrad.

Na verdade se trata de uma novela. Tem pouco mais de cem páginas. Na edição da Companhia de Bolso ainda incluíram no volume outro conto do Conrad e um texto que contextualiza a novela na História, escrito pelo Luiz Felipe de Alencastro. Mas desculpa aí, Alencastro: só o Coração das trevas já bastaria pra dar o recado.

Conrad consegue manter o fio da tensão esticado desde a primeira até a última frase da longa fala de Marlow. A estrutura do livro é aquela super utilizada, sobretudo pelos escritores do século XIX: um sujeito que escuta de outro uma narrativa ocorrida num lugar distante. Assim, a narrativa é, logo no início do livro, passada para Marlow, um marujão que narra sua trajetória, sua jornada rumo a um mundo que se assemelha aos próprios pesadelos: "foi como se, em vez de estar rumando para o centro de um continente, eu estivesse prestes a partir com destino ao centro da Terra".

Ou para o "próprio centro", o inferno particular, o epicentro da nossa angústia, Marlow poderia completar. Mas não completou: deixou para nós, leitores babões, feito eu, que saímos da aventura de mais uma grande narrativa como quem sai de uma experiência extrasensorial. E é, pois não?

(Aliás, o século XX não foi capaz de gerar grandes narrativas, como o século XIX o fez. Gerou outras, com outras características. Dizem os especialistas que essa é uma tendência literária da contemporaneidade. Mas eu ainda sinto saudade de, por vezes, pegar um "romanção" desses. Gosto de escritores que me pegam pela mão e me levam para lugares estranhos, obscuros. Isso é outra discussão...)

6 comentários:

  1. João: creio que esta é a 1ª vez que descordamos. Deixei o livro de Conrad pela metade. Muito aventuresco para o meu gosto; o que, ao fim e ao cabo, não quer dizer nada, é apenas o meu gosto. Reconheço o estilo do grande escritor.

    Passo sempre por aqui porque seu modo de escrever sobre livros é cativante. Imagine que me deu vontade de retomar a leitura. Pode ter sido aquele o momento errado, não é? Costuma ocorrer, só temo que não haja vista não gostar mesmo de aventuras marítimas.

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  2. É isso aí, João. Acho que há lugar tanto para o "romanção" quanto para o texto contemporâneo desestruturado. Desde que sejam bons. Eu gosto de variar, também. Beijo.

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  3. João: Hermann Hesse teve lugar na minha vida, li tudo dele e escrevi sobre um ocorrido interessante durante minha fase Hesse.
    Se quiser conferir: http://leitoracritica.blogspot.com/search?q=hermann+hesse

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  4. João

    às vezes entro aqui pra olhar esse teu riso
    como se houvesse esperança, leio seus textos
    e saio melhor; o romanção, eu gosto. Há dias tenho andado de mão dada com Dostoiévski, já viajei de trem, congelei mas agora me esquenta a alma daquele príncipe. Sim, eu sei: as coisas vão piorar...
    um grande abraço!

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