Antes de falar propriamente do livro, conto um causo.
Mais ou menos três anos atrás estávamos, eu e um diretor amigo, conversando a respeito do que se considera “boa arte”: boa literatura, bom cinema, bom teatro. Além do que seria uma discussão até moral, que estava ameaçando desembocar num debate chatísimo e careta que acabaria não levando a nada terminou, graças a meu amigo, numa quase epifania a dois. Conto nos próximos parágrafos.
Lá pelos idos da década de 1950, Marlon Brando, então galã no auge, participava de um filme. Uma cena estava sendo feita: a mocinha descia do trem e era recebida por ele, o mocinho, que galantemente a ajudava a carregar a bagagem. Atravessavam uma praça, a mocinha despedia-se do mocinho e entrava numa casa. A cena fora ensaiada exaustivamente até a perfeição.
Dada a ordem luzes-câmara-ação, Brando pede encarecidamente ao diretor cinco minutos de pausa, aceitos. Tranca-se em seu trailer e sai de lá cinco minutos depois portando um sorriso enigmático. Sugere ao diretor uma pequena mudança na cena: que, na hora em que pega a mala da mocinha, igualmente leve suas luvas. O diretor, sem entender as razões do astro mas também incapaz de ver algo que prejudique a cena, autoriza a mudança. Assim fazem.
A mocinha desce do trem. O mocinho cavalheirescamente pega sua bagagem. Sua luva. Atravessam a praça conversando, enquanto o mocinho brinca com uma das luvas dela, chegando inclusive uma vez a vesti-la na própria mão e despi-la em seguida. Chegando à casa, despedem-se e a cena termina. Fade out.
O grande cinema, assim como a grande literatura, permite diversas leituras.
Um espectador mais ingênuo veria exatamente o que aqui descrevi: um cavalheiro brincalhão com luvas. No entanto, um espectador mais, digamos, preparado – que soubesse que simbolicamente vestir e despir uma luva é ato análogo ao sexual – sacaria que Brando trepou com a moça no primeiro encontro. E na frente de milhares de espectadores.
Grande arte, várias leituras. O que uma vírgula separa nunca esteve separado por quem tem talento para a coisa.
(continua)
Conversas sobre literatura, livros, escrever e ler
"Há semanas que, salvo duas breves interrupções, não pronuncio uma só palavra; a minha solidão fecha-se, enfim, e estou no meu trabalho como o caroço no fruto." René Maria Rilke
"A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever agora é o interminável, o incessante." Maurice Blanchot
"A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever agora é o interminável, o incessante." Maurice Blanchot
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Muito bacana o texto, João. Aguardarei a parte II.
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