Pessoal, resolvi desabilitar o caroço da fruta. Agora inaugurei novo blog: o Espaço Literário.
Passem por lá.
Abraço!
Conversas sobre literatura, livros, escrever e ler
"Há semanas que, salvo duas breves interrupções, não pronuncio uma só palavra; a minha solidão fecha-se, enfim, e estou no meu trabalho como o caroço no fruto." René Maria Rilke
"A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever agora é o interminável, o incessante." Maurice Blanchot
"A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever agora é o interminável, o incessante." Maurice Blanchot
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
A canalhice premiada
Quando eu era adolescente (e nisso lá se vão alguns anos), o final do ano era de espera. Era a época em que a leva de compositores mais fantástica que este país já teve lançava seus LPs (para quem não sabe, uns CDs enormes que cabiam menos música, mas que tinham um charme insuperável). Era uma turma bacaninha, no mínimo: Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano e Gil. A espera, na maioria das vezes, valia.
Fui transitando por minhas paixões, e não só na seara da música: João Bosco, Mario Vargas Llosa, Saramago. Ultimamente, um escritor que me deixa num estado parecido é o Ian McEwan. Trata-se de um britânico nascido em 1948 e que escreve romances memoráveis. Dele destaco "Na praia", por exemplo, e "Reparação", que foi (muito bem) adaptado para o cinema, com o título "Desejo e reparação": se vir este DVD na locadora mais próxima, não deixe escapar.
Agora, o sujeito lançou um novo romance: "Solar". Conta a história de Michael Beard, um sujeito que, vinte anos atrás, ganhou o Nobel pela descoberta d Coflação, um negócio que eu deixo para vocês entenderem nas palavras do próprio McEwan, que fez um pesquisa porreta na área. Do prêmio para cá, o personagem se transformou num pária da ciência: gordo, desleixado, pouco se importando com o futuro do planeta, área em que foi notabilizado pelo Nobel.
O livro tem de tudo um pouco: adultério, morte, ameaças. Lido assim, parece resenha de produto de um Sidney Sheldon, o que não fala a verdade a respeito do romance. Além de putamente (perdão, o advérbio é perfeito) bem escrito, nele o autor desfia toda sua capacidade de contador de histórias e de prospector da alma dos homens. Sobretudo dos homens mais canalhas que você puder imaginar.
O final é magistral, a cena que encerra o livro é digna de eternização em museu de cera, sei lá.
O escritor está entre os "grandes" da literatura contemporânea, e não à toa.
Se puder, leia.
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Há esperança
O livro atende pelo nome de Clube do livro. Só isso já me faria voltar os olhos para ele com mais atenção, como se sua capa reluzisse para mim de um modo diferente. Então, li o subtítulo: ser leitor - que diferença faz?
Foi amor à primeira vista.
A autora é a Luzia de Maria, doutora em Letras pela USP e atualmente professora da UFF. Minha conterrânea, essa niteroiense começou em 1982 um tal "clube do livro" com seus alunos de uma escola pública antiga de Niterói, o Liceu Nilo Peçanha (aliás, minhas irmãs, mais velhas que eu, estudaram no Liceu).
Batalha sem perdedores, entre amigos. Tratava-se, num lado do ringue, de uma professora apaixonada por leitura e livros e, do outro lado, de alunos sedentos de aprender de uma forma mais prazerosa do que naquelas preleções maçantes com regras gramaticais brotando feito coelhos pela boca do coitado do professor que fica lá na frente.
Também sou professor. No fundamental. E sei o quanto é chato para os alunos terem aulas gramaticais. Sempre disse a eles que um bom livro lido com atenção vale por uns três meses de aula careta. Que a leitura te deixa mais capaz de ler - não só livros, mas o próprio mundo, como um texto. Em resumo, um bom leitor está apto a ser um bom interpretador do mundo, um sujeito crítico que terá menos chance, por exemplo, de ser emgambelado por qualquer político.
O saber é porreta mesmo.
Mas voltando à Luzia de Maria e a seu livro delicioso: o objetivo do clube do livro era formar leitores. E a Luzia conseguiu. E conta isso, inclusive com direito a uma história que se passou com ela. Já conto. Vou buscar um café.
Imaginem. Prova de redação de vestibular. Na sala, a própria Luzia prestava a prova. Não vou dizer o ano para que ninguém faça a conta e tente descobrir a idade da moça. O tema da redação era baseado numa frase do Rui Barbosa: "A regra da igualdade não é senão quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam". Só uma aluna começou a escrever a redação. Os demais, pasmos, incapazes de entender aquela palavra, "quinhoar", estatelavam-se frente à página em branco. Até que um candidato mais corajoso pediu:
- Dava pra dizer o que é quinhoar?
Impasse.
Os professores que faziam as vezes de fiscais do vestibular conversam e, mantendo o impasse, resolvem ver onde poderiam encontrar um dicionário. Vexatório é pouco! Mas antes que o pai dos burros fosse buscado, aquela aluna, que já terminava o segundo parágrafo, levantou o dedo e sugeriu:
- Eu sei o que significa quinhoar. Posso falar?
Aliviados, os fiscais permitiram.
- Quinhoar é repartir, partilhar, premiar, recompensar...
E destilou mais um sem-número de significados para o verbo.
A candidata sabida era a Luzia, a autora.
Moral da história? Deixa disso, histórias com moral são sempre chatíssimas. Mas há uma conclusão.
Ela sabia o significado de quinhoar, sim, mas não porque era uma rata de dicionários. Sabia porque era uma leitora. E quando estamos lendo e nos deparamos com uma palavra que não está no nosso vocabulário, tentamos adivinhar seu significado pelo contexto. Na segunda vez que a lemos, a coisa já corre mais tranquila. Na terceira, a palavra já foi incorporada.
Foi assim.
A historinha serviu só para dar água na boca e acender a vontade de quem lê o blog (os cinco leitores, se tanto, de que Machado falava). O livro é porreta, indispensável para quem ama livros, é doido por literatura, é professor ou se interessa pelo assunto.
Acima de tudo, o livro é porreta porque trata de uma coisa que sempre chamou a atenção do homem: a paixão. No caso, não a paixão amorosa e romântica, mas a paixão pelos livros, pela literatura. e pelo encantamento daí resultante Pelos universos em que ela nos permite adentrar, pelas experiências que adquirimos quando no exercício da leitura. Pelo prazer de estarmos lendo o mundo, de termos a oportunidade de lermos mundos diferentes do nosso.
Acima de tudo, o livro é porreta porque trata de uma coisa que sempre chamou a atenção do homem: a paixão. No caso, não a paixão amorosa e romântica, mas a paixão pelos livros, pela literatura. e pelo encantamento daí resultante Pelos universos em que ela nos permite adentrar, pelas experiências que adquirimos quando no exercício da leitura. Pelo prazer de estarmos lendo o mundo, de termos a oportunidade de lermos mundos diferentes do nosso.
Feliz ano noivo
Feliz ano noivo? Rapaz, o cara que escreve este blog errou de dedo, alguém poderá pensar. Mas pensaria errado. É noivo mesmo.Ano novo, amor novo. Oi noivo.
Logo nesse iniciozinho de ano, volto a escrever no Caroço. Afinal, o mestrado acabou. E, com ele (ou melhor, sem ele), o tempo esticou.
Terei tempo agora para escrever sobre o ler e o escrever.
Aguardem.
O Caroço voltou. Palavra de escoteiro.
Feliz 2011.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
Boas surpresas
Já aconteceu várias vezes de você topar com um livro, namorá-lo, mas no final deixá-lo para uma outra oportunidade, às vezes tendo lido uma meia dúzia de páginas? Já aconteceu disso ocorrer várias vezes com o mesmo livro?
Minha experiência com "Coração da trevas", do Joseph Conrad, foi algo semelhante. O namoro, as tentativas, as abordagens... Deus do céu, acho que há mais de quinze anos flerto com esse livro, sempre agendando mentalmente que nas próximas férias, que no próximo fim de semana, que no próximo ano... E a leitura fica sempre pra depois.
Pois bem: passei o ano novo na região de São Sebastião (SP). Antes de fazer as malas, prometi não levar livro algum, pois iria relaxar, "des-pensar" o mestrado, coçar o oco do cérebro, sei lá, tomar chá de Hebe Camargo, zerar o QI... Só que não resisti. Eu e as livrarias temos um caso de amor patológico. Eu caí na asneira de passar na frente de uma. Não resisti e entrei. E logo na entrada... que livro me recepcionava? Aquele (esse) do Conrad.
Na verdade se trata de uma novela. Tem pouco mais de cem páginas. Na edição da Companhia de Bolso ainda incluíram no volume outro conto do Conrad e um texto que contextualiza a novela na História, escrito pelo Luiz Felipe de Alencastro. Mas desculpa aí, Alencastro: só o Coração das trevas já bastaria pra dar o recado.
Conrad consegue manter o fio da tensão esticado desde a primeira até a última frase da longa fala de Marlow. A estrutura do livro é aquela super utilizada, sobretudo pelos escritores do século XIX: um sujeito que escuta de outro uma narrativa ocorrida num lugar distante. Assim, a narrativa é, logo no início do livro, passada para Marlow, um marujão que narra sua trajetória, sua jornada rumo a um mundo que se assemelha aos próprios pesadelos: "foi como se, em vez de estar rumando para o centro de um continente, eu estivesse prestes a partir com destino ao centro da Terra".
Ou para o "próprio centro", o inferno particular, o epicentro da nossa angústia, Marlow poderia completar. Mas não completou: deixou para nós, leitores babões, feito eu, que saímos da aventura de mais uma grande narrativa como quem sai de uma experiência extrasensorial. E é, pois não?
(Aliás, o século XX não foi capaz de gerar grandes narrativas, como o século XIX o fez. Gerou outras, com outras características. Dizem os especialistas que essa é uma tendência literária da contemporaneidade. Mas eu ainda sinto saudade de, por vezes, pegar um "romanção" desses. Gosto de escritores que me pegam pela mão e me levam para lugares estranhos, obscuros. Isso é outra discussão...)
Minha experiência com "Coração da trevas", do Joseph Conrad, foi algo semelhante. O namoro, as tentativas, as abordagens... Deus do céu, acho que há mais de quinze anos flerto com esse livro, sempre agendando mentalmente que nas próximas férias, que no próximo fim de semana, que no próximo ano... E a leitura fica sempre pra depois.
Pois bem: passei o ano novo na região de São Sebastião (SP). Antes de fazer as malas, prometi não levar livro algum, pois iria relaxar, "des-pensar" o mestrado, coçar o oco do cérebro, sei lá, tomar chá de Hebe Camargo, zerar o QI... Só que não resisti. Eu e as livrarias temos um caso de amor patológico. Eu caí na asneira de passar na frente de uma. Não resisti e entrei. E logo na entrada... que livro me recepcionava? Aquele (esse) do Conrad.
Na verdade se trata de uma novela. Tem pouco mais de cem páginas. Na edição da Companhia de Bolso ainda incluíram no volume outro conto do Conrad e um texto que contextualiza a novela na História, escrito pelo Luiz Felipe de Alencastro. Mas desculpa aí, Alencastro: só o Coração das trevas já bastaria pra dar o recado.
Conrad consegue manter o fio da tensão esticado desde a primeira até a última frase da longa fala de Marlow. A estrutura do livro é aquela super utilizada, sobretudo pelos escritores do século XIX: um sujeito que escuta de outro uma narrativa ocorrida num lugar distante. Assim, a narrativa é, logo no início do livro, passada para Marlow, um marujão que narra sua trajetória, sua jornada rumo a um mundo que se assemelha aos próprios pesadelos: "foi como se, em vez de estar rumando para o centro de um continente, eu estivesse prestes a partir com destino ao centro da Terra".
Ou para o "próprio centro", o inferno particular, o epicentro da nossa angústia, Marlow poderia completar. Mas não completou: deixou para nós, leitores babões, feito eu, que saímos da aventura de mais uma grande narrativa como quem sai de uma experiência extrasensorial. E é, pois não?
(Aliás, o século XX não foi capaz de gerar grandes narrativas, como o século XIX o fez. Gerou outras, com outras características. Dizem os especialistas que essa é uma tendência literária da contemporaneidade. Mas eu ainda sinto saudade de, por vezes, pegar um "romanção" desses. Gosto de escritores que me pegam pela mão e me levam para lugares estranhos, obscuros. Isso é outra discussão...)
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
Livros de minha vida
Resolvi inaugurar uma série de posts (que não serão necessariamente seguidinhos um do outro, pois me darei ao luxo de falar sobre outras cositas). Na série, como dizia, trarei livros que me marcaram. Fundamentais por me terem ajudado a tomar alguma decisão ou simplesmente por me terem deixado de queixo caído por ter conseguido entrever algo muito perto da perfeição naquelas páginas.
Sei lá.
Inaugurando a série... Todos os fogos o fogo, do Cortázar. Um livro com oito contos. Delicioso. De um escritor que é mais conhecido por dois outros livros de sua lavra: O Jogo da Amarelinha e Histórias de cronópios e famas.
Eu disse oito contos? Pois no mínimo dois são pequenas obras-primas.
A primeira obra-prima é o conto que inaugura o livrinho, A auto-estrada do sul. Trata de um engarrafamento gigantesco que passa a tornar-se parte da vida daquelas pessoas.
O segundo conto que acho digníssimo de nota é o belo e, claro, um tanto fantástico A ilha do meio-dia. Nele, um comissário de bordo sonha poder um dia passar férias (ou a vida toda) numa minúscula ilha grega. Vale cada caractere.
Sei lá.
Inaugurando a série... Todos os fogos o fogo, do Cortázar. Um livro com oito contos. Delicioso. De um escritor que é mais conhecido por dois outros livros de sua lavra: O Jogo da Amarelinha e Histórias de cronópios e famas.
Eu disse oito contos? Pois no mínimo dois são pequenas obras-primas.
A primeira obra-prima é o conto que inaugura o livrinho, A auto-estrada do sul. Trata de um engarrafamento gigantesco que passa a tornar-se parte da vida daquelas pessoas.
O segundo conto que acho digníssimo de nota é o belo e, claro, um tanto fantástico A ilha do meio-dia. Nele, um comissário de bordo sonha poder um dia passar férias (ou a vida toda) numa minúscula ilha grega. Vale cada caractere.
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
O Mario
Sempre emocionante quando fala de literatura. Sempre empolgante quando se refere ao potencial transformador da literatura. Sempre apaixonado por seu ofício, Mario Vargas Llosa e seus períodos imensos cheios de retornos abarrocados, além de ter sido um dos escritores mais lidos e relidos por mim, ainda é um dos intelectuais mais apaixonantes e polêmicos, sobretudo quando se repassa sua trajetória pessoal e política. Dele, li e reli Conversa na Catedral, meu preferido, livro de formação fundamental para que me apaixonasse definitivamente pela literatura como matéria de uso, de trabalho e de vida.
Do Mario destaco um trecho, retirado de artigo seu publicado na revista Piauí:
Do Mario destaco um trecho, retirado de artigo seu publicado na revista Piauí:
A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos.
A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte. Nós, leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstoi, nos sentimos membros da mesma espécie porque, nas obras que eles criaram, aprendemos aquilo que partilhamos como seres humanos, o que permanece em todos nós além do amplo leque de diferenças que nos separam.
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Drops de invenção: os hiperbóreos
Aquele mendigo, queimando-se vivo, debatendo-se. Nunca nos esqueceremos da cena. Do cheiro. Me lembrou os fins de semana de clube, churrasco, todos nós ainda crianças, brincando na piscina dos pequenos, os pais entornando garrafas de cerveja, comentando jogos e simulando não-olhares para pernas bem torneadas, certamente não pertencentes às respectivas esposas. As mães de olhos colados em nossos corpos pequenos.
O álcool, quando começa a pegar fogo, parece invisível, fogo que só queima, sem se ver. Foi assim com o mendigo: Chico despejou a garrafa de álcool no preto e eu fui logo atrás, riscando fósforos de uma marca vagabunda. Tão vagabunda que tive que riscar oito palitos até que conseguisse acender o fogo.
Nós somos o máximo.
O álcool, quando começa a pegar fogo, parece invisível, fogo que só queima, sem se ver. Foi assim com o mendigo: Chico despejou a garrafa de álcool no preto e eu fui logo atrás, riscando fósforos de uma marca vagabunda. Tão vagabunda que tive que riscar oito palitos até que conseguisse acender o fogo.
Nós somos o máximo.
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Alvíssaras! O rei está vivo!
A edição é impecável - da CosacNaify.
O escritor é argentino. Altamente recomendado por um sujeito da estatura do Roberto Bolaño. Os três capítulos iniciais são de tirar o fôlego - bem escritos, um texto direto, ágil, sem papas, frescura zero, imagens a mil. Enfim: um prazer, como sempre é prazer quando sou apresentado a escritor que desconheço.
Quando terminar a leitura, falo sobre o livro. Mas calma: o tijolão tem 488 páginas e eu tenho uma dissertação para terminar e alguns frilas por aí para concluir e entregar. Além do meu trabalho regular, de oito horas. "Quem mandou estudar", perguntaria, Julio, amigo de humor inteligentíssimo.
Resumo do post: estou feito pinto no lixo, feliz por ter encontrado escritor a) bom e b) até hoje desconhecido para mim.
O escritor é argentino. Altamente recomendado por um sujeito da estatura do Roberto Bolaño. Os três capítulos iniciais são de tirar o fôlego - bem escritos, um texto direto, ágil, sem papas, frescura zero, imagens a mil. Enfim: um prazer, como sempre é prazer quando sou apresentado a escritor que desconheço.
Quando terminar a leitura, falo sobre o livro. Mas calma: o tijolão tem 488 páginas e eu tenho uma dissertação para terminar e alguns frilas por aí para concluir e entregar. Além do meu trabalho regular, de oito horas. "Quem mandou estudar", perguntaria, Julio, amigo de humor inteligentíssimo.
Resumo do post: estou feito pinto no lixo, feliz por ter encontrado escritor a) bom e b) até hoje desconhecido para mim.
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
Manual da paixão solitária (Parte II - Final)
Em seu “Manual da paixão solitária” Scliar consegue unir o que à primeira vista parece impossível: história, mitologia judaico-cristã (juro que acessei o Houaiss para ver se o hífen tinha sido mantido), um amor, não, dois amores, obrigações oriundas do costume etc.
A trama. O assunto escolhido para debates de um congresso mundial de assuntos bíblicos foi um trecho do Antigo Testamento que trata do clã de Judá, irmão de José (que acabou virando o tal poderoso José do Egito). Dois especialistas famosíssimos e arqui-inimigos, um famoso professor e uma sua ex-aluna, vão proferir suas palestras, esperadíssimas. Cada um resolve ousar e, em vez de apresentar um texto nos moldes acadêmicos, escrevem como se narrassem em primeira pessoa. O professor narra na voz de Shelá. A ex-aluna, na de Tamar.
A história segue. Judá tem três filhos: Er, Onan e Shelá. Da esquerda para a direita: o primogênito, o do meio e o caçula. O mais velho, moço sensível e de parco penhor masculino, está em idade para casar. Dois clãs decidem o casamento. Até aí, novela das seis faz igual, certo? Só que Er... bem, embora Tamar, a noiva escolhida, fosse uma mulher belíssima, Er era moço delicado que não gostava muito da fruta. Os irmãos tacitamente compreendiam, mas um homem que não gostasse de mulheres naquela época era tido como algo extremamente fora da ordem. Menos aceitável, por exemplo, que acreditar que um sujeito fosse capaz de abrir um mar em dois. Resultado: o casamento termina com Er se matando e Tamar sem ver a "cor da fruta".
Conforme rezavam os costumes, uma mulher que enviuvava devia ser desposada (assumida) pelo próximo irmão mais velho. A quem coube tão hercúlea tarefa? A Onan. Aquele mesmo, de cujo nome se originou “onanismo” (Onanismo, em português, é o “gozar fora”). Onan, culpando Tamar por ter feito seu irmão Er sofrer, casa-se com a moça, mas perpetra uma vingança impensada para a época: faz sexo com ela, jogando em seguida seu sêmen na terra, impedindo-a de ter filhos. Tamar, angustiada por um primeiro marido que não fazia sexo com ela, seguido por outro, que a impedia de ser mãe, desespera-se, impotente.
Confidente escolhido pela moça, o apaixonado caçula Shelá, assumindo a narrativa na primeira parte do livro, conta sua história, seguida, na segunda parte dois, pela narração de Tamar, feita pela ex-aluna daquele professor.
Meu deuzinho – o leitor pensará – por que esse sujeito escreveu toda aquela história do Marlon Brando, da luva e tal? Pois bem, aqui estamos tratando de um tipo de literatura que me apetece. Como você pode perceber, a trama do livro é gostosa, “pega” o leitor. Particularmente, li o livro inteiro em três dias, coisa impensável nesse meus dias apressados de fim de mestrado, com tempo mínimo disponível para leituras que não tenham a ver com a dissertação. E aqui entra um conceito bacana: o da boa literatura, que se identifica com aqueles livros que permitem várias leituras.
Esse livro do Scliar pode ser lido apenas como uma história de amor e encantamento de Shelá por Tamar, de vingança de Onan; igualmente pode ser ida com outros olhos.
Por exemplo, Shelá, o narrador da primeira parte do livro, tem uma caverna secreta, onde passa algumas tardes a moldar bonecos de barro. Só aqui vemos dois símbolos fortes para nós do Ocidente: a caverna e o barro.
A caverna remonta o mito da caverna platônico: um povo que vivia dentro de uma caverna e que só conhecia o mundo pelas sombras projetadas no fundo da caverna. O mundo real, para eles, portanto, resumia-se a sombras, a cópias daquilo que se entende por real. Faziam ficção com a vida, aqueles “cavernantes” do mito platônico.
O barro, por sua vez, foi a matéria-prima usada pelo deus cristão para modelar o homem.
Shelá faz diversas pequenas criaturas de barro e as esconde numa caverna. Imagem interessante, não? Mais tarde, o mesmo Shelá aprende a escrever. A escrita, naquela época, era atividade necessariamente voltada para os registros históricos, já que o era feita sobre material extremamente caro e de difícil grafia. Shelá transgride, não sem culpa, essa limitação da escrita. Ao romper o preceito, faz ficção, pois o que escreve sai, como diz, de dentro da alma: Shelá se constrói como narrador para nós, leitores. Para esconder seu pecado, de perpetrar uma escrita egoísta e pessoal, Shelá esconde seus escritos numa ânfora de barro. Novamente o barro, o símbolo.
Além: no foco narrativo do romance, Moacyr Scliar dá outro banho. Eu disse que o livro é dividido em duas partes, cada uma narrada por um professor, certo? E dentro de cada narrativa temos um narrador (Shelá e Tamar) capitaneando a escrita. Só que o professor e Shelá apresentam semelhanças - ambos aceitam ser limitados por costumes. Igualmente Tamar e a ex-aluna se assemelham na recusa em aceitar regras rígidas. Não poucas vezes, ao longo do livro, o leitor se indaga quem está de fato narrando, e quem está de fato sendo o leitor. Pois às vezes o professor, ao narrar as aventuras de Shelá, espelhadas em sua própria vida, torna-se leitor de si mesmo. Por aí vai: esse romance do Scliar merece muito mais do que essa meia dúzia de parágrafos num blog recém-criado por um sujeito desconhecido.
De minha parte, Moacyr Scliar está de parabéns, e mereceu, sim, o Jabuti. Belo livro, história cativante, boa literatura. Literatura tanto para quem vê um homem gentil flertando inocentemente uma moça, quanto para quem o vê fornicando com ela em praça (e tela) pública.
A trama. O assunto escolhido para debates de um congresso mundial de assuntos bíblicos foi um trecho do Antigo Testamento que trata do clã de Judá, irmão de José (que acabou virando o tal poderoso José do Egito). Dois especialistas famosíssimos e arqui-inimigos, um famoso professor e uma sua ex-aluna, vão proferir suas palestras, esperadíssimas. Cada um resolve ousar e, em vez de apresentar um texto nos moldes acadêmicos, escrevem como se narrassem em primeira pessoa. O professor narra na voz de Shelá. A ex-aluna, na de Tamar.
A história segue. Judá tem três filhos: Er, Onan e Shelá. Da esquerda para a direita: o primogênito, o do meio e o caçula. O mais velho, moço sensível e de parco penhor masculino, está em idade para casar. Dois clãs decidem o casamento. Até aí, novela das seis faz igual, certo? Só que Er... bem, embora Tamar, a noiva escolhida, fosse uma mulher belíssima, Er era moço delicado que não gostava muito da fruta. Os irmãos tacitamente compreendiam, mas um homem que não gostasse de mulheres naquela época era tido como algo extremamente fora da ordem. Menos aceitável, por exemplo, que acreditar que um sujeito fosse capaz de abrir um mar em dois. Resultado: o casamento termina com Er se matando e Tamar sem ver a "cor da fruta".
Conforme rezavam os costumes, uma mulher que enviuvava devia ser desposada (assumida) pelo próximo irmão mais velho. A quem coube tão hercúlea tarefa? A Onan. Aquele mesmo, de cujo nome se originou “onanismo” (Onanismo, em português, é o “gozar fora”). Onan, culpando Tamar por ter feito seu irmão Er sofrer, casa-se com a moça, mas perpetra uma vingança impensada para a época: faz sexo com ela, jogando em seguida seu sêmen na terra, impedindo-a de ter filhos. Tamar, angustiada por um primeiro marido que não fazia sexo com ela, seguido por outro, que a impedia de ser mãe, desespera-se, impotente.
Confidente escolhido pela moça, o apaixonado caçula Shelá, assumindo a narrativa na primeira parte do livro, conta sua história, seguida, na segunda parte dois, pela narração de Tamar, feita pela ex-aluna daquele professor.
Meu deuzinho – o leitor pensará – por que esse sujeito escreveu toda aquela história do Marlon Brando, da luva e tal? Pois bem, aqui estamos tratando de um tipo de literatura que me apetece. Como você pode perceber, a trama do livro é gostosa, “pega” o leitor. Particularmente, li o livro inteiro em três dias, coisa impensável nesse meus dias apressados de fim de mestrado, com tempo mínimo disponível para leituras que não tenham a ver com a dissertação. E aqui entra um conceito bacana: o da boa literatura, que se identifica com aqueles livros que permitem várias leituras.
Esse livro do Scliar pode ser lido apenas como uma história de amor e encantamento de Shelá por Tamar, de vingança de Onan; igualmente pode ser ida com outros olhos.
Por exemplo, Shelá, o narrador da primeira parte do livro, tem uma caverna secreta, onde passa algumas tardes a moldar bonecos de barro. Só aqui vemos dois símbolos fortes para nós do Ocidente: a caverna e o barro.
A caverna remonta o mito da caverna platônico: um povo que vivia dentro de uma caverna e que só conhecia o mundo pelas sombras projetadas no fundo da caverna. O mundo real, para eles, portanto, resumia-se a sombras, a cópias daquilo que se entende por real. Faziam ficção com a vida, aqueles “cavernantes” do mito platônico.
O barro, por sua vez, foi a matéria-prima usada pelo deus cristão para modelar o homem.
Shelá faz diversas pequenas criaturas de barro e as esconde numa caverna. Imagem interessante, não? Mais tarde, o mesmo Shelá aprende a escrever. A escrita, naquela época, era atividade necessariamente voltada para os registros históricos, já que o era feita sobre material extremamente caro e de difícil grafia. Shelá transgride, não sem culpa, essa limitação da escrita. Ao romper o preceito, faz ficção, pois o que escreve sai, como diz, de dentro da alma: Shelá se constrói como narrador para nós, leitores. Para esconder seu pecado, de perpetrar uma escrita egoísta e pessoal, Shelá esconde seus escritos numa ânfora de barro. Novamente o barro, o símbolo.
Além: no foco narrativo do romance, Moacyr Scliar dá outro banho. Eu disse que o livro é dividido em duas partes, cada uma narrada por um professor, certo? E dentro de cada narrativa temos um narrador (Shelá e Tamar) capitaneando a escrita. Só que o professor e Shelá apresentam semelhanças - ambos aceitam ser limitados por costumes. Igualmente Tamar e a ex-aluna se assemelham na recusa em aceitar regras rígidas. Não poucas vezes, ao longo do livro, o leitor se indaga quem está de fato narrando, e quem está de fato sendo o leitor. Pois às vezes o professor, ao narrar as aventuras de Shelá, espelhadas em sua própria vida, torna-se leitor de si mesmo. Por aí vai: esse romance do Scliar merece muito mais do que essa meia dúzia de parágrafos num blog recém-criado por um sujeito desconhecido.
De minha parte, Moacyr Scliar está de parabéns, e mereceu, sim, o Jabuti. Belo livro, história cativante, boa literatura. Literatura tanto para quem vê um homem gentil flertando inocentemente uma moça, quanto para quem o vê fornicando com ela em praça (e tela) pública.
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