Conversas sobre literatura, livros, escrever e ler

"Há semanas que, salvo duas breves interrupções, não pronuncio uma só palavra; a minha solidão fecha-se, enfim, e estou no meu trabalho como o caroço no fruto." René Maria Rilke

"A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever agora é o interminável, o incessante." Maurice Blanchot

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O Mario

Sempre emocionante quando fala de literatura. Sempre empolgante quando se refere ao potencial transformador da literatura. Sempre apaixonado por seu ofício, Mario Vargas Llosa e seus períodos imensos cheios de retornos abarrocados, além de ter sido um dos escritores mais lidos e relidos por mim, ainda é um dos intelectuais mais apaixonantes e polêmicos, sobretudo quando se repassa sua trajetória pessoal e política. Dele, li e reli Conversa na Catedral, meu preferido, livro de formação fundamental para que me apaixonasse definitivamente pela literatura como matéria de uso, de trabalho e de vida.

Do Mario destaco um trecho, retirado de artigo seu publicado na revista Piauí:

A ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos.
A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte. Nós, leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstoi, nos sentimos membros da mesma espécie porque, nas obras que eles criaram, aprendemos aquilo que partilhamos como seres humanos, o que permanece em todos nós além do amplo leque de diferenças que nos separam.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Drops de invenção: os hiperbóreos

Aquele mendigo, queimando-se vivo, debatendo-se. Nunca nos esqueceremos da cena. Do cheiro. Me lembrou os fins de semana de clube, churrasco, todos nós ainda crianças, brincando na piscina dos pequenos, os pais entornando garrafas de cerveja, comentando jogos e simulando não-olhares para pernas bem torneadas, certamente não pertencentes às respectivas esposas. As mães de olhos colados em nossos corpos pequenos.

O álcool, quando começa a pegar fogo, parece invisível, fogo que só queima, sem se ver. Foi assim com o mendigo: Chico despejou a garrafa de álcool no preto e eu fui logo atrás, riscando fósforos de uma marca vagabunda. Tão vagabunda que tive que riscar oito palitos até que conseguisse acender o fogo.

Nós somos o máximo.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Alvíssaras! O rei está vivo!

A edição é impecável - da CosacNaify.

O escritor é argentino. Altamente recomendado por um sujeito da estatura do Roberto Bolaño. Os três capítulos iniciais são de tirar o fôlego - bem escritos, um texto direto, ágil, sem papas, frescura zero, imagens a mil. Enfim: um prazer, como sempre é prazer quando sou apresentado a escritor que desconheço.

Quando terminar a leitura, falo sobre o livro. Mas calma: o tijolão tem 488 páginas e eu tenho uma dissertação para terminar e alguns frilas por aí para concluir e entregar. Além do meu trabalho regular, de oito horas. "Quem mandou estudar", perguntaria, Julio, amigo de humor inteligentíssimo.

Resumo do post: estou feito pinto no lixo, feliz por ter encontrado escritor a) bom e b) até hoje desconhecido para mim.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Manual da paixão solitária (Parte II - Final)

Em seu “Manual da paixão solitária” Scliar consegue unir o que à primeira vista parece impossível: história, mitologia judaico-cristã (juro que acessei o Houaiss para ver se o hífen tinha sido mantido), um amor, não, dois amores, obrigações oriundas do costume etc.

A trama. O assunto escolhido para debates de um congresso mundial de assuntos bíblicos foi um trecho do Antigo Testamento que trata do clã de Judá, irmão de José (que acabou virando o tal poderoso José do Egito). Dois especialistas famosíssimos e arqui-inimigos, um famoso professor e uma sua ex-aluna, vão proferir suas palestras, esperadíssimas. Cada um resolve ousar e, em vez de apresentar um texto nos moldes acadêmicos, escrevem como se narrassem em primeira pessoa. O professor narra na voz de Shelá. A ex-aluna, na de Tamar.

A história segue. Judá tem três filhos: Er, Onan e Shelá. Da esquerda para a direita: o primogênito, o do meio e o caçula. O mais velho, moço sensível e de parco penhor masculino, está em idade para casar. Dois clãs decidem o casamento. Até aí, novela das seis faz igual, certo? Só que Er... bem, embora Tamar, a noiva escolhida, fosse uma mulher belíssima, Er era moço delicado que não gostava muito da fruta. Os irmãos tacitamente compreendiam, mas um homem que não gostasse de mulheres naquela época era tido como algo extremamente fora da ordem. Menos aceitável, por exemplo, que acreditar que um sujeito fosse capaz de abrir um mar em dois. Resultado: o casamento termina com Er se matando e Tamar sem ver a "cor da fruta".

Conforme rezavam os costumes, uma mulher que enviuvava devia ser desposada (assumida) pelo próximo irmão mais velho. A quem coube tão hercúlea tarefa? A Onan. Aquele mesmo, de cujo nome se originou “onanismo” (Onanismo, em português, é o “gozar fora”). Onan, culpando Tamar por ter feito seu irmão Er sofrer, casa-se com a moça, mas perpetra uma vingança impensada para a época: faz sexo com ela, jogando em seguida seu sêmen na terra, impedindo-a de ter filhos. Tamar, angustiada por um primeiro marido que não fazia sexo com ela, seguido por outro, que a impedia de ser mãe, desespera-se, impotente.

Confidente escolhido pela moça, o apaixonado caçula Shelá, assumindo a narrativa na primeira parte do livro, conta sua história, seguida, na segunda parte dois, pela narração de Tamar, feita pela ex-aluna daquele professor.

Meu deuzinho – o leitor pensará – por que esse sujeito escreveu toda aquela história do Marlon Brando, da luva e tal? Pois bem, aqui estamos tratando de um tipo de literatura que me apetece. Como você pode perceber, a trama do livro é gostosa, “pega” o leitor. Particularmente, li o livro inteiro em três dias, coisa impensável nesse meus dias apressados de fim de mestrado, com tempo mínimo disponível para leituras que não tenham a ver com a dissertação. E aqui entra um conceito bacana: o da boa literatura, que se identifica com aqueles livros que permitem várias leituras.

Esse livro do Scliar pode ser lido apenas como uma história de amor e encantamento de Shelá por Tamar, de vingança de Onan; igualmente pode ser ida com outros olhos.

Por exemplo, Shelá, o narrador da primeira parte do livro, tem uma caverna secreta, onde passa algumas tardes a moldar bonecos de barro. Só aqui vemos dois símbolos fortes para nós do Ocidente: a caverna e o barro.

A caverna remonta o mito da caverna platônico: um povo que vivia dentro de uma caverna e que só conhecia o mundo pelas sombras projetadas no fundo da caverna. O mundo real, para eles, portanto, resumia-se a sombras, a cópias daquilo que se entende por real. Faziam ficção com a vida, aqueles “cavernantes” do mito platônico.

O barro, por sua vez, foi a matéria-prima usada pelo deus cristão para modelar o homem.

Shelá faz diversas pequenas criaturas de barro e as esconde numa caverna. Imagem interessante, não? Mais tarde, o mesmo Shelá aprende a escrever. A escrita, naquela época, era atividade necessariamente voltada para os registros históricos, já que o era feita sobre material extremamente caro e de difícil grafia. Shelá transgride, não sem culpa, essa limitação da escrita. Ao romper o preceito, faz ficção, pois o que escreve sai, como diz, de dentro da alma: Shelá se constrói como narrador para nós, leitores. Para esconder seu pecado, de perpetrar uma escrita egoísta e pessoal, Shelá esconde seus escritos numa ânfora de barro. Novamente o barro, o símbolo.

Além: no foco narrativo do romance, Moacyr Scliar dá outro banho. Eu disse que o livro é dividido em duas partes, cada uma narrada por um professor, certo? E dentro de cada narrativa temos um narrador (Shelá e Tamar) capitaneando a escrita. Só que o professor e Shelá apresentam semelhanças - ambos aceitam ser limitados por costumes. Igualmente Tamar e a ex-aluna se assemelham na recusa em aceitar regras rígidas. Não poucas vezes, ao longo do livro, o leitor se indaga quem está de fato narrando, e quem está de fato sendo o leitor. Pois às vezes o professor, ao narrar as aventuras de Shelá, espelhadas em sua própria vida, torna-se leitor de si mesmo. Por aí vai: esse romance do Scliar merece muito mais do que essa meia dúzia de parágrafos num blog recém-criado por um sujeito desconhecido.

De minha parte, Moacyr Scliar está de parabéns, e mereceu, sim, o Jabuti. Belo livro, história cativante, boa literatura. Literatura tanto para quem vê um homem gentil flertando inocentemente uma moça, quanto para quem o vê fornicando com ela em praça (e tela) pública.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Manual da paixão solitária – Moacyr Scliar (Parte I)

Antes de falar propriamente do livro, conto um causo.

Mais ou menos três anos atrás estávamos, eu e um diretor amigo, conversando a respeito do que se considera “boa arte”: boa literatura, bom cinema, bom teatro. Além do que seria uma discussão até moral, que estava ameaçando desembocar num debate chatísimo e careta que acabaria não levando a nada terminou, graças a meu amigo, numa quase epifania a dois. Conto nos próximos parágrafos.

Lá pelos idos da década de 1950, Marlon Brando, então galã no auge, participava de um filme. Uma cena estava sendo feita: a mocinha descia do trem e era recebida por ele, o mocinho, que galantemente a ajudava a carregar a bagagem. Atravessavam uma praça, a mocinha despedia-se do mocinho e entrava numa casa. A cena fora ensaiada exaustivamente até a perfeição.

Dada a ordem luzes-câmara-ação, Brando pede encarecidamente ao diretor cinco minutos de pausa, aceitos. Tranca-se em seu trailer e sai de lá cinco minutos depois portando um sorriso enigmático. Sugere ao diretor uma pequena mudança na cena: que, na hora em que pega a mala da mocinha, igualmente leve suas luvas. O diretor, sem entender as razões do astro mas também incapaz de ver algo que prejudique a cena, autoriza a mudança. Assim fazem.

A mocinha desce do trem. O mocinho cavalheirescamente pega sua bagagem. Sua luva. Atravessam a praça conversando, enquanto o mocinho brinca com uma das luvas dela, chegando inclusive uma vez a vesti-la na própria mão e despi-la em seguida. Chegando à casa, despedem-se e a cena termina. Fade out.

O grande cinema, assim como a grande literatura, permite diversas leituras.

Um espectador mais ingênuo veria exatamente o que aqui descrevi: um cavalheiro brincalhão com luvas. No entanto, um espectador mais, digamos, preparado – que soubesse que simbolicamente vestir e despir uma luva é ato análogo ao sexual – sacaria que Brando trepou com a moça no primeiro encontro. E na frente de milhares de espectadores.

Grande arte, várias leituras. O que uma vírgula separa nunca esteve separado por quem tem talento para a coisa.

(continua)

Outro dele

Corpos em chamas se atiram na lama
mulheres e crianças primeiro
caranguejos aplaudem Nagasaki
bebê de oito meses é defumado
enquanto Beatriz
agora entende o poema derradeiro

Beatriz mãe solteira antes de morrer
deu um inútil pontapé na porta

(Trecho de "Caranguejos aplaudem Nagasaki", de Marcelo Ariel)

Obs.: Amanhã sai a primeira parte da resenha do Scliar.