Conversas sobre literatura, livros, escrever e ler

"Há semanas que, salvo duas breves interrupções, não pronuncio uma só palavra; a minha solidão fecha-se, enfim, e estou no meu trabalho como o caroço no fruto." René Maria Rilke

"A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever agora é o interminável, o incessante." Maurice Blanchot

domingo, 20 de setembro de 2009

João e Maria

Conforme prometido, escrevo sobre Eles eram muitos cavalos, do escritor mineiro Luiz Rufato. O livro foi publicado originalmente em 2001 pela Boitempo Editorial - e esta foi a edição que me chegou às mãos.

O quartocapista, seja lá quem tenha sido, já inicia a primeira dúvida a respeito do livro quando o classifica como romance. Sabe-se que o autor ri-se do fato de ter ganhado prêmios com este livro. Não por ter ganhado, mas por ter ganhado na categoria "romance". Definitivamente não se trata de um romance. O que vemos neste livro é uma sequência de (boas, ótimas) narrativas curtas, ensaios de vidas, flashes de personagens, testes de narrativas - chame-se do que quiser - sem qualquer tipo de "pega" entre elas, a não ser o fato de que todas se passam num dia determinado (7 de maio de 2000) na cidade de São Paulo. Ou seja, fora aquele espaço e aquele tempo, aquelas narrativas não possuem qualquer tipo de semelhança, identidade. Minto: a escrita de Ruffato talvez seja o terceiro e último ponto de contato entre as 69 histórias curtas do livro.

Ok. Levanto ainda outra questão: um bom volume de contos, bem organizado e estruturado, não excepcionalmente apresenta essa mesma característica (de algo que propicie alguma "pega"entre os contos que o constituem). Assim, mesmo o fato daquelas narrativas ocorrerem no mesmo espaço e mesmo tempo não transforma o texto em romance. Mas esqueçamos do nome de Inês e vejamos como Inês de fato é.

Ora se utilizando de uma grande angular e focalizando o grande drama da cidade e de seus habitantes, ora se aproximando tanto do objeto a ponto de distorcer sua percepção, transformando-o em um Mr. Hide do Dr. Jeckyl original, o escritor de Cataguases mostra-se um habilíssimo manejador desse jogo de câmeras da ficção. Também os narradores propostos por Rufato excedem, mostrando-se criativos, como aquele que, como rato, conduz a narrativa, enquanto rói as carnes tenras de um bebê no chão de um barraco miserável qualquer.

Considera-se como uma das características do chamado narrador pós-moderno (tá bom, em outro post podemos discutir isso...) privilegiar o olhar, o ponto de vista, por conta da incapacidade da ficção suplantar o real - babilônico e bárbaro ao extremo. A barbárie da vida real não permitiria que a ficção se desenvolvesse, o que faria com que um tipo de narrativa que se aproxima muito do relato jornalístico preponderasse.

É o que Rufato faz: em muitas das narrativas de Eles eram muitos cavalos vemos um ficcionista que por vezes deixa-se resvalar pelo jornalista (o autor também é jornalista) na construção dos textos. Tanto é assim que há alguns (textos? segmentos? contos? chame-se do que quiser, vá lá:) segmentos que nada têm de história narrada. São, antes, cópias fiéis do mundo real, como no segmento 69, que é a transcrição de um cardápio de um restaurante supostamente chique. Ou no segmento 24, que é a lista de livros encontrados em alguma estante. Ou seja, são pedaços da vida real transformados em segmentos que, misturados aos segmentos de ficcões curtas produzidas para o livro, perfazem um mosaico que ilustra como que silhuetas, entrevisões de fantasmas que habitaram, naquele 7 de maio de 2000, uma São Paulo que a todo momento se mostra mais e mais babilônica e que foi captada pela lente do ficcionista.

Um bom livro de contos. Um belo exemplo de como a abordagem jornalística e a ficcional têm se aproximado e se confundido nessa quadra que alguns especialistas já apelidaram de pós-moderna. Mas ainda assim martela na cabeça as mesmas perguntas: o romance, hoje, ainda existe como gênero? Ou: o quão Frankestein será o romance nesta contemporaneidade desnorteadora? O quão o veremos desplugado e distante de sua imagem inaugural, moderna? Que questões o romance se prestará a responder? Ou apenas lhe restará aquela última pergunta, que sempre existiu em cada livro e que nunca foi competentemente respondida, mesmo por um Blanchot: "para onde vai a literatura"?

Enquanto não se conseguir responder adequadamente a essas questões, a procura não termina. Novos escritores sempre serão lançados. Igualmente novos livros. Em cada um deles, pode-se vislumbrar uma promessa. Em cada um, o João, não eu, mas aquele do conto infantil, esperará encontrar uma longa fileira de migalhas de pão. Talvez um dia se ache alguma resposta que não represente síntese alguma. No entanto, eu ficaria feliz se, ao menos quem procura, continuasse encontrando algum caminho para a literatura.

De tudo isso, fico feliz com essa apenas meia-verdade: o caminho vale muito mais do que a certeza de que ele leva a algum lugar.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Livro novo na cabeceira


Luiz Ruffato é um escritor de quem escuto falar bem, mas de quem nunca li nada.
Eles eram muitos cavalos é o primeiro romance do Luiz.
Em breve comento.

domingo, 13 de setembro de 2009

O meu poeta de cabeceira

O enigma

Será sempre
este esquecido alfabeto
cujas letras são nuvens,
tocando suavemente o nosso olhar
e os lagos?
O que diz a água
dentro dela antes de tocar a terra?
O que sussurra no ouvido da água o ar?
Como decifrar essa chuva imóvel para os mortos?
E essa outra chuva que escreve vida no ar?

(Marcelo Ariel)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Nem cruz, nem caldeirinha

O Zé Castello acaba de me deixar entre a cruz e a caldeirinha, tendendo mais para a última. No seu livro A literatura na poltrona, o crítico/jornalista é taxativo: “a partir da segunda metade do século XX, com a expansão da teoria literária, a literatura se converteu em um objeto de e para especialistas”.

De acordo com o Zé, a literatura se converteu numa coisa menor que sua crítica. Teríamos, por exemplo, mais gente que leu (ou disse que leu) O cão do sertão, livro do Luiz Roncari que fala da obra do Guimarães Rosa, do que leitores propriamente do Guimarães Rosa.

Se ninguém precisa conhecer a teoria do cinema para se emocionar com um bom filme, igualmente não seria necessário se entender de literatura para fruir um puta livro.

Por um lado, concordo, Zé. A literatura tem sido colocada num degrau bastante inferior que sua crítica e, certamente, que seus simulacros – best-sellers, livros de auto-ajuda etc.

Mas por outro lado, vejo com um pouco de susto um sistema literário ser deixado sem amparo crítico que reoriente as produções ficcionais e as proteja de um mercado que, cada vez mais, privilegia o reprodutível que vende, preterindo o surpreendente e avassalador, o novo que assusta, e encalha.

Vamos combinar? Nem a cruz nem a caldeirinha. Quero ler como sempre li: por prazer, amando e odiando, mudando de opinião a respeito de um mesmo livro, deixando de ler um escritor por suas posições políticas (sim, quero poder ser preconceituoso com quem leio!). Mas por outro lado quero entender mais um pouco de teoria literária, ler os “caras” que leram os “grandes caras”, concordar e discordar deles.

Literatura é um menáge que se faz entre quatro páginas. Se não gozar, não valeu.